No país em que, a cada seis horas, uma mulher é assassinada por ser mulher, está sendo gestado um amplo movimento de enfrentamento dessa violência: a Marcha Nacional contra a Misoginia e o Feminicídio, que começou, na tarde desta quinta-feira (30), na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul (ALEMS). Com o plenário lotado e participação majoritariamente feminina, a Casa de Leis realizou a audiência pública “Violência Contra a Mulher e Feminicídio no MS – A Urgência do Combate à Misoginia”, proposta pelo deputado Pedro Kemp (PT) e com a presença da ministra das Mulheres, Cida Gonçalves.
“Vamos percorrer todos os estados brasileiros. E estamos começando essa marcha aqui em Mato Grosso do Sul. Quero convocar a todas e a todos que estão neste plenário para que possamos efetivamente fazer, neste país, a Marcha contra a Misoginia e o Feminicídio, uma marcha contra o ódio. Não vamos deixar mais que nos silenciem e que nos matem”, discursou a ministra. Ela também disse que o Estado está entre as unidades federativas prioritárias no Pacto Nacional de Enfrentamento ao Feminicídio.
Durante seu discurso, a ministra focou na necessidade de se combater a misoginia, que é ódio às mulheres. “A misoginia tem sido discutida principalmente no contexto das plataformas digitais, a violência online, e na violência de gênero e raça. Também ocorre a misoginia na rede de atendimento, sobretudo na Justiça, onde, muitas vezes, são reproduzidos estereótipos de gênero, com desqualificação do relato da vítima”, afirmou Cida Gonçalves. Ela também informou, a partir de dados da Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos, que a misoginia está entre as práticas de ódio que mais crescem nas redes sociais, com aumento de 251% de 2021 para 2022.
Entre as frentes de ação, a ministra destacou a necessidade do enfrentamento ao chamado “machosfera”, ambiente virtual que reúne milhares de homens que partilham uma ideia comum: o ódio às mulheres. “A misoginia é reiterada nas redes sociais por grupos organizados, os chamados espaços machosfera. Eles utilizam o discurso de ódio, da pedagogia de desumanização do outro. Buscam legitimar a relação de desigualdade de gênero, usando um vocabulário comum”, disse a ministra e informou que há, pelo menos, 80 canais apenas em uma mídia social, que atacam, sobretudo, mulheres mais influentes, como políticas e jornalistas.
“Você é um orgulho para nós de Mato Grosso do Sul. Seja muito bem-vinda ao nosso Estado, à nossa Casa”, disse o deputado Pedro Kemp em saudação à ministra Cida Gonçalves. O parlamentar também falou que sentiu muito feliz com o plenário lotado, sobretudo com a participação das mulheres. “Nós temos que acreditar que é possível erradicar a violência contra as mulheres, acabar com o feminicídio. E agora temos um ministério específico para discutir políticas públicas e resgate dos direitos das mulheres”, afirmou.
De acordo com o deputado, há três fatores que impulsionaram o crescimento da violência contra as mulheres nos últimos anos. “Consideramos três motivos: redução no orçamento das políticas públicas das mulheres; a pandemia, que comprometeu o serviço de atendimento e fez com que os homens passassem mais tempo dentro das casas; e o avanço do movimento de extrema direita, que fortalece a cultura machista”, elencou o parlamentar. “Precisamos superar essa cultura. E uma forma de vencer isso é através da educação de nossas crianças. Precisamos começar da educação infantil para que os meninos respeitem as meninas”, finalizou.
“É preciso ecoar essa dor tão silenciada”, disse liderança indígena
Por cerca de quatro horas, várias pessoas, sobretudo mulheres lideranças de movimentos, ocuparam a palavra. Entre elas, a representante das mulheres guarani kaiowá, Jaque Kuna Aranduhá. Ela enfatizou que a violência contra as mulheres indígenas não é cultural. “Essa violência é estrutural, é uma herança da colonização, da invasão de 523 anos de nossos territórios”, disse. “Vamos caminhar juntas, vamos tecer juntas. É preciso ecoar essa dor tão silenciada. Eu trouxe aqui, ministra, um documento da nossa assembleia. É a voz da nossa dor na escrita de vocês. É preciso uma política específica de enfrentamento da violência contra as mulheres indígenas, porque essa violência têm suas especificidades”, cobrou.
Bruna, a voz da sobrevivência
Entre as várias pessoas que fizeram uso da palavra na tarde desta quinta-feira, uma voz foi de sobrevivente. “Eu reescrevi a minha história. Eu me reconstruí como mulher”, disse Bruna Oliveira, que quase foi morta em 2017. Na madrugada do dia 4 de novembro daquele ano, o ex-companheiro de Bruna invadiu a casa dela e passou a espancá-la enquanto ela dormia. “Acordei atordoada e saí correndo”, contou. Ela correu por seis quadras, mas o homem ainda a alcançou e atropelou com uma moto. Agredida com um pé de cabra, Bruna teve os braços quebrados e fraturas na cabeça. “Cheguei ao hospital com exposição do crânio e levei mais de 20 pontos na cabeça”, rememorou.
Bruna também contou que as pessoas que testemunharam a violência, nada faziam. “Quando ele falava ‘ela é minha mulher’, as pessoas iam embora”, lembrou-se, enfatizando que sofria, naquele momento, além da violência física pelo ex-marido, a violência da omissão. “Estou reescrevendo minha história”, reforçou Bruna, que está grávida de sete meses, gestando um menino, o Joaquim. “Hoje, eu tenho uma família e vou colocar no mundo um homem que vai respeitar as mulheres”, finalizou.
Uma morte a cada seis horas
Bruna Oliveira é sobrevivente de uma estatística, que apresenta no Brasil números alarmantes. Em 2022, 1.410 mulheres foram vítimas de femicídio no país, conforme dados do Atlas da Violência, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), mencionados pela ministra Cida Gonçalves. Esse número corresponde à média de um assassinato de mulher, pelo simples motivo de ser mulher, a cada seis horas.
Situação crítica também apresenta Mato Grosso do Sul. Conforme o Mapa do Feminicídio 2022, elaborado pelo Governo do Estado, ocorreram 34 feminicídios em 2021. Nesse ano, 17.856 mulheres registraram boletins de ocorrência devido a algum tipo de violência doméstica e familiar. Isso significa que, a cada 15 minutos, uma mulher comparece a uma delegacia do Estado para denunciar a violência e buscar ajuda.
Audiência
Também participaram do evento o presidente da Casa de Leis, deputado Gerson Claro (PP), as deputadas Mara Caseiro (PSDB) e a Lia Nogueira (PSDB), os deputados Lucas de Lima (PDT), João César Mattogrosso (PSDB), Renato Câmara (PDT) e Professor Rinaldo Modesto (Podemos), a deputada Camila Jara (PT), o deputado federal Geraldo Rezende (PSDB), a prefeita de Campo Grande, Adriane Lopes (Patriota), a vereadora Luiza Ribeira (PT), secretária adjunta da Secretaria de Estado de Turismo, Esporte, Cultura e Cidadania, Viviane Luiza da Silva, que representou o governador Eduardo Riedel (PSDB), entre outras autoridades,
A audiência teve uma especificidade: no início de suas falas, as pessoas fizeram a audiodescrição para possibilitar a melhor participação dos cegos. O evento teve cobertura e transmissão ao vivo pela Comunicação Institucional da Casa de Leis, por meio dos canais oficiais: site, TV ALEMS, Rádio ALEMS, Portal da ALEMS, Youtube e Facebook.
Antes da audiência, a ministra Cida Gonçalves deu entrevista coletiva em que afirmou que Mato Grosso do Sul está entre os estados prioritários nas políticas do Governo Federal de enfrentamento da violência contra as mulheres (leia mais)
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