domingo, 10/12/2023

FOLHETIM! A metamorfose, de Kafka. Capítulo II (1). Boa leitura!

15/08/23

Capítulo II

     Foi apenas ao anoitecer que Gregório acordou do seu sono profundo, que mais parecera um desmaio. Ainda que nada o tivesse feito, de certo teria acordado pouco mais tarde por si só, visto que se sentia suficientemente descansado e bem dormido, mas parecia-lhe ter sido despertado por um andar cauteloso e pelo fechar da porta que dava para o vestíbulo.

     Os postes da rua projetavam aqui e além um reflexo pálido, no teto e na parte superior dos móveis, mas ali em baixo, no local onde se encontrava, estava escuro. Lentamente, experimentando de modo desajeitado as antenas, cuja utilidade começava pela primeira vez a apreciar, arrastou-se até à porta, para ver o que acontecera. Sentia todo o flanco esquerdo convertido numa única cicatriz, comprida e incomodamente repuxada, e tinha efetivamente de coxear sobre as duas filas de pernas. Uma delas ficara gravemente atingida pelos acontecimentos dessa manhã — era quase um milagre ter sido afetada apenas uma e arrastava-se, inútil, atrás de si. Só depois de chegar à porta percebeu o que o tinha atraído para ela: o cheiro da comida. Com efeito, tinham lá posto uma tigela de leite dentro do qual flutuavam pedacinhos de pão. Quase desatou a rir de contentamento, porque sentia ainda mais fome que de manhã, e imediatamente enfiou a cabeça no leite, quase mergulhando também os olhos. Depressa, a retirou, desanimado: além de ter dificuldade em comer, por causa do flanco esquerdo magoado, que o obrigava a ingerir a comida à força de sacudidelas, recorrendo a todo o corpo, não gostava do leite, conquanto tivesse sido a sua bebida preferida e fosse certamente essa a razão que levara a irmã a pôr lhe ali, Efetivamente, foi quase com repulsa que se afastou da tigela e se arrastou até meio do quarto. Através da fenda da porta, verificou que tinham acendido o gás na sala de estar. Embora àquela hora o pai costumasse ler o jornal em voz alta para a mãe e eventualmente também para a irmã, nada se ouvia.

     Bom, talvez o pai tivesse recentemente perdido o hábito de ler em voz alta, hábito esse que a irmã tantas vezes mencionara em conversa e por carta. Mas por todo o lado reinava o mesmo silêncio, embora por certo estivesse alguém em casa. Que vida sossegada a minha família tem levado! , disse Gregório, de si para si. Imóvel, a fitar a escuridão, sentiu naquele momento um grande orgulho por ter sido capaz de proporcionar aos pais e à irmã uma tal vida numa casa tão boa. Mas que sucederia se toda a calma, conforto e satisfação acabas sem em catástrofe?

     Tentando não se perder em pensamentos, Gregório refugiou-se no exercício físico e começou a rastejar para um lado e para o outro, ao longo do quarto. A certa altura, durante o longo fim de tarde, viu as portas laterais abrir-se ligeiramente e ser novamente fechada; mais tarde, sucedeu o mesmo com a porta do outro lado. Alguém pretendera entrar e mudara de ideias. Gregório resolveu postar-se ao pé da porta que dava para a sala de estar, decidido a persuadir qualquer visitante indeciso a entrar ou, pelo menos, a descobrir quem poderia ser. Mas esperou em vão, pois ninguém tornou a abrir a porta.

     De manhã cedo, quando todas as portas estavam fechadas à chave, todos tinham querido entrar; agora, que ele tinha aberto uma porta e a outra fora aparentemente aberta durante o dia, ninguém entrava e até as chaves tinham sido transferidas para o lado de fora das portas. Só muito tarde apagaram o gás na sala; Gregório tinha quase a certeza de que os pais e a irmã tinham ficado acordados até então, pois ouvia-os afastarem-se, caminhando nos bicos dos pés. Não era nada provável que alguém viesse visitá-lo até à manhã seguinte, de modo que tinha tempo de sobra para meditar sobre a maneira de reorganizar a sua vida. O enorme quarto vazio dentro do qual era obrigado a permanecer deitado no chão enchia-o de uma apreensão cuja causa não conseguia descobrir, pois havia cinco anos que o habitava. Meio inconscientemente, não sem uma leve sensação de vergonha, meteu-se debaixo do sofá, onde imediatamente se sentiu bem, embora ficasse com o dorso um tanto comprimido e não lhe fosse possível levantar a cabeça, lamentando apenas que o corpo fosse largo de mais para caber totalmente debaixo do sofá. Ali passou toda a noite, grande parte da qual mergulhado num leve torpor, do qual a fome constantemente o despertava com um sobressalto, preocupando-se ocasionalmente com a sua sorte e alimentando vagas esperanças, que levavam todas à mesma conclusão: devia deixar-se estar e, usando de paciência e do mais profundo respeito, auxiliar a  família a suportar os incômodos que estava des-

tinado a causar-lhes nas condições presentes. CONTINUA NA EDIÇÃO DE 1608/2023

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