11/08/23
O estalido mais sonoro da fechadura, finalmente a ceder, apressou literalmente Gregório. Com um fundo suspiro de alívio, disse, de si para si: Afinal, não precisei do serralheiro, e encostou a cabeça ao puxador, para abrir completamente a porta. Como tinha de puxar a porta para si, manteve-se oculto, mesmo quando a porta ficou escancarada. Teve de deslizar lentamente para contornar a porta da mais próxima da porta dupla, manobra que lhe exigiu grande cuidado, não fosse cair em cheio de costas, mesmo ali no limiar.
Estava ainda empenhado nesta operação, sem ter tempo para observar qualquer outra coisa, quando ouviu o chefe de escritório soltar um agudo Oh!, que mais parecia um rugido do vento; foi então que o viu, de pé junto da porta, com uma mão a tremer tapando a boca aberta e recuando, como se impelido por qualquer súbita força invisível. A mãe, que apesar da presença do chefe de escritório tinha o cabelo ainda em desalinho, espetado em todas as direções, começou por retorcer as mãos e olhar para o pai, após o que deu dois passos em direção a Gregório e tombou no chão, num torvelinho de saias, o rosto escondido no peito. O pai cerrou os punhos com um ar cruel, como se quisesse obrigar Gregório a voltar para o quarto com um murro; depois, olhou perplexo em tomo da sala de estar, cobriu os olhos com as mãos e desatou a chorar, o peito vigoroso sacudido por soluços.
Gregório não entrou na sala, mantendo-se encostado à parte interior da portada fechada, deixando apenas metade do corpo à vista, a cabeça a tombar para um e outro lado, por forma a ver os demais.
Entretanto, a manhã tornara-se mais límpida. Do outro lado da rua, divisava-se nitidamente uma parte do edifício cinzento-escuro, interminavelmente comprido, que era o hospital, abruptamente interrompido por uma fila de janelas iguais. Chovia ainda, mas eram apenas grandes pingos bem visíveis que caíam literalmente um a um. Sobre a mesa espalhava-se a louça do breve almoço, visto que esta era para o pai de Gregório a refeição mais importante, que prolongava durante horas percorrendo diversos jornais. Mesmo em frente de Gregório, havia uma fotografia pendurada na parede que o mostrava fardado de tenente, no tempo em que fizera o serviço militar, a mão na espada e um sorriso despreocupado na face, que impunha respeito pelo uniforme e pelo seu porte militar.
A porta que dava para o vestíbulo estava aberta, vendo-se também aberta a porta de entrada, para além da qual se avistava o terraço de entrada e os primeiros degraus da escada. — Bem — disse Gregório, perfeitamente consciente de ser o único que mantinha uma certa compostura —, vou me vestir, embalar as amostras e sair. Desde que o senhor me dê licença que saia. Como vê, não sou obstinado e tenho vontade de trabalhar. A profissão de caixeiro- viajante é dura, mas não posso viver sem ela. Para onde vai o senhor? Para o escritório? Sim? Não se importa de contar lá exatamente o que aconteceu? Uma pessoa pode estar temporariamente incapacitada, mas essa é a altura indicada para recordar os seus serviços anteriores e ter em mente que mais tarde, vencida a incapacidade, a pessoa certamente trabalhará com mais diligência e concentração. Tenho uma dívida de lealdade para com o patrão, como o senhor bem sabe. Além disso, tenho de olhar pelos meus pais e pela minha irmã. Estou a passar por uma situação difícil, mas acabarei vencendo. Não me torne as coisas mais complicadas do que elas já são. Eu bem sei que os caixeiros-viajantes não são muito bem vistos no escritório. As pessoas pensam que eles levam uma vida estupenda e ganham rios de dinheiro. Trata-se de um preconceito que nenhuma razão especial leva a reconsiderar. CONTINUA NA EDIÇÃO DE 12/08/23.