07/09/23
Agora estava ali de pé firme, envergando uma bela farda azul de botões dourados, das que os contínuos dos bancos usam; o vigoroso duplo queixo espetava-se para fora da dura gola alta do casaco e, sob as espessas sobrancelhas, brilhavam-lhe os olhos pretos, vívidos e penetrantes. Os cabelos brancos outrora emaranhados dividiam-se agora, bem lisos, para um e outro lado de uma risca ao meio, impecavelmente traçada. Lançou vigorosamente o boné, que tinha bordado o monograma de qualquer banco, para cima de um sofá, no outro extremo da sala e, corri as largas abas do casaco, avançou ameaçadoramente para Gregório.
Provavelmente, nem ele próprio sabia o que ia fazer, mas, fosse como fosse, ergueu o pé a uma altura pouco natural, aterrando Gregório ante o tamanho descomunal das solas dos sapatos. Mas Gregório não podia arriscar-se a enfrentá-lo, pois desde o primeiro dia da sua nova vida se tinha apercebido de que o pai considerava que só se podia lidar com ele adotando as mais violentas medidas. Nestas condições, desatou a fugir do pai, parando quando ele parava e precipitando-se novamente em frente ao menor movimento do pai. Foi assim que deram várias voltas ao quarto, sem que nada de definido sucedesse; aliás, tudo aquilo estava longe de assemelhar-se sequer a uma perseguição, dada a lentidão com que se processava. Gregório resolveu manter-se no chão, não fosse o pai interpretar como manifestação declarada de perversidade qualquer excursão pelas paredes ou pelo teto. Apesar disso, não podia suportar aquela corrida por muito mais tempo, uma vez que, por cada passada do pai, era obrigado a empenhar-se em toda uma série de movimentos e, da mesma maneira que na vida anterior nunca tivera uns pulmões famosos, começava a perder o fôlego. Prosseguia ofegante, tentando concentrar todas as energias na fuga, mal mantendo os olhos abertos, tão apatetado que não conseguia sequer imaginar qualquer processo de escapar a não ser continuar em frente, quase esquecendo que podia utilizar as paredes, repletas de mobílias ricamente talhadas, cheias de saliências e reentrâncias. De súbito, sentiu embater perto de si e rolar à sua frente qualquer coisa que fora violentamente arremessada. Era uma maçã, à qual logo outra se seguiu. Gregório deteve-se, assaltado pelo pânico. De nada servia continuar a fugir, uma vez que o pai resolvera bombardeá-lo. Tinha enchido os bolsos de maçãs, que tirara da fruteira do aparador, e atirava-lhes uma a uma, sem grandes preocupações de pontaria. As pequenas maçãs vermelhas rebolavam no chão como que magnetizadas e engatilhadas umas nas outras. Uma delas, arremessada sem grande força, roçou o dorso de Gregório e ressaltou sem causar-lhe dano. A que se seguiu, penetrou-lhe nas costas. Gregório tentou arrastar-se para a frente, como se, fazendo-o, pudesse deixar para trás a incrível dor que repentinamente sentiu, mas sentia-se pregado ao chão e só conseguiu acaçapar-se, completamente desorientado
Num último olhar, antes de perder a consciência, viu a porta abrir-se de repente e a mãe entrar de roldão à frente da filha, em trajes mais pequenas, pois Grete tinha-a libertado da roupa para lhe permitir melhor respiração e reanimá-la. Viu ainda a mãe correr para o pai, deixando cair no chão as saias de baixo, uma após outra, tropeçar nelas e cair nos braços do pai, em completa união com ele nesse instante, a vista de Gregório começou a falhar, enclavinhando-lhe as mãos em redor do pescoço e pedindo-lhe que poupasse a vida ao filho. CONTINUA NA PROXIMA EDIÇÃO (08/09)
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